Das questões de género

21:54


Vem este post a propósito deste post do Arrastão. Devo dizer que este post me intrigou. Não entendi o propósito. Pareceu-me despropositado, abusadamente machista, se bem que, depois deste outro post, parece-me que o Daniel se redimiu.
É que há um tipo de discurso moderno, repleto, por certo, das melhores intenções, que insiste em defender que entre homens e mulheres não existem diferenças. Não se nasce mulher, torna-se mulher, dizia Beauvoir.
Aqueles direitos pelo quais os movimentos feministas de meados do século passado defenderam, muitas vezes com a própria vida, tendemos nós, hoje, a tê-los por garantidos: direitos civis (como o direito ao voto), direito a decidir sobre o próprio corpo, liberdade sexual. E é certo que acabamos com grande parte dos tabus respeitantes à condição feminina.
Hoje queremos todos esses direitos civis e individuais e queremos também todos os outros deveres que hoje se transformaram em direitos, por advirem de uma escolha e não de uma imposição: o casamento e a maternidade. Queremos iguais direitos, queremos igualdade de oportunidades, queremos o trabalho, queremos o casamento, queremos a maternidade e queremos também a identidade que nos torna indivíduos, a individualidade. Queremos, enfim, tudo a que temos direito .
E esta confirmação de que podemos, efectivamente, fazer tudo de forma exemplar, vem de todos os quadrantes da sociedade. Dizem-nos que é possível ser-se uma mãe fantástica, uma excelente profissional e ainda um indivíduo com aquela liberdade pessoal que julgamos que perdemos quando passamos para uma outra categoria. E por um tempo isto resulta. Depois, chegamos a um estado de assoberbamento e damos por nós a pensar se não teremos feito escolhas erradas, se não teremos escolhido em demasia. Se, afinal, perdemos a razão. E, nesse momento, caímos na tentação de acreditar naquele discurso proteccionista e condescendente, mascarado tantas vezes de machismo, de chauvinismo e com laivos de misoginia. Tendemos a acreditar que talvez nós não sejamos, de facto, capazes de fazer tudo. E caímos no erro de nos impormos uma escolha: ou o trabalho, ou a família, ou os filhos ou a independência e o espaço pessoal. Ou pior, caímos no erro da autocomiseração. Como se a escolha dependesse do tudo ou nada. A questão não é podermos ou não fazer tudo, é a de sermos ou não livres para escolher o caminho. Muitas vezes não há escolha.
Devo dizer que não sei o que é pior: aquele discurso de complacência e proteccionista cuja intenção de fundo é apenas a necessidade de domínio, que nos passa a mão pela cabeça e tenta convencer-nos de que há que aceitar as evidências e o fracasso; ou, por outro lado, aquele outro discurso, mascarado de moderno e feminista, que defende que não há diferenças entre homens e mulheres e que, por isso, todos devem ser tratados da mesma forma, independentemente das suas particularidades de género. Os dois discursos parecem-me pestilentos.
Ora, há pelo menos uma particularidade, que não me parece ser apenas de pormenor, em que homens e mulheres não são, efectivamente, iguais: a capacidade de gerar, a maternidade. É um facto que é a mulher que carrega o filho durante meses no seu útero – e anseio com optimismo pelo momento em que a mulher possa escolher delegar essa responsabilidade no homem (e que revolução social isso não trará!). E ainda que com todas as leis de protecção da maternidade – que reduzem, mas não impedem, por exemplo, a discriminação de género no acesso ao emprego ou a lugares de poder – ainda assim, não podemos escamotear o facto de que uma mulher que decide engravidar, vê reduzidas muitas das suas liberdades. Senão, tentem fazer uma meia-maratona, entrar em alta competição, fazer rafting ou paraquedismo com uma barriga de seis, sete, oito, nove meses. Mas não falo apenas de actividades físicas intensas: tentem conseguir autorização para viajar de avião depois dos sete meses de gestação, ou tentem fazer qualquer tipo de actividade intensa nas duas primeiras semanas pós-parto (a mim levou-me mais de um mês para conseguir sentar-me normalmente); ou tentem ausentar-se por mais de 4 horas do vosso bebé enquanto estão na fase de amamentação (sim, posso escolher não amamentar, mas também posso escolher fazê-lo, é meu direito).
E, tentem planear a vossa vida, pondo em espera a vontade de procriar: pensar no emprego, na carreira, construir uma vida estável, sólida… esperam até aos 30, 40, 45, 50. Hoje, convenhamos, não conseguimos estabilidade financeira nem com 40, quanto mais com 30. E esperamos, esperamos, esperamos até que… ops, já com 35 anos o médico diz-nos que a nossa gravidez pode ser de risco. Não, não somos iguais aos homens, que podem procriar até morrer (mais outra conquista da ciência a ser pensada seriamente). Aos 35 anos já há a possibilidade de gravidez de risco, portanto, ou nos despachamos ou… desistimos dessa parte!
Não, não somos iguais aos homens. Enquanto a gestação for assunto de mulher, não somos iguais, de facto. E é curioso que das lutas das feministas mais empedernidas não faça parte a reivindicação do direito à maternidade. A ânsia de nos assemelharmos aos homens, que advém do facto de acreditarmos que só na semelhança podemos exigir direitos iguais, esforçou-se por ceifar todas as diferenças. A maternidade é tabu para o feminismo, tal como o casamento ou todos os outros direitos que pareçam permitir a submissão da mulher face ao homem. De facto, terei de fazer um grande esforço para encontrar uma feminista na condição de mãe.
É só no reconhecimento das diferenças que podemos aspirar a promover a igualdade de direitos e oportunidades. Senão, arriscamo-nos a correr na direcção oposta e a perpetuar a discriminação negativa.
Perdoem-me as feministas mais empedernidas, mas ainda hoje, depois de muita psicanálise para aceitar a minha condição de género, ou talvez até por isso mesmo, não me incomoda nada que um homem se ofereça para ajudar a carregar as minhas malas, me abra a porta ou me dê passagem no elevador. E, devo dizer, não considero, absolutamente, submissão deixar que um homem me abra a porta do carro para eu entrar ou me ajeite a cadeira à mesa. É que, para que um acto de machismo ou de submissão seja assim considerado, é preciso uma intenção e alguém que se considere a subjugar e alguém que se considere subjugado. Sem tais percepções, um acto é apenas um acto, sem mais.
É curioso que nas regras de conduta de algumas organizações internacionais onde existe um ambiente multicultural (como a ONU), actos como os que referi no parágrafo anterior sejam considerados desrespeitosos e desaconselhados. Entende-se. Afinal, as conquistas pela igualdade de género ainda são muito recentes e estão por finalizar.
Para alguém se sentir ofendido não é necessário ter havido a intenção de ofensa. E com isto volto ao post de Daniel Oliveira. Independentemente da intenção que está por trás do post, a interpretação que eu resolvo dar-lhe é minha responsabilidade. Tal como é da minha responsabilidade a escolha que decido fazer, sempre que a escolha é possível. Como dizia um professor meu (embora com discurso tendencioso, uma vez que estávamos a falar de sexo e gravidez e visto ele ser um padre, mas, ainda assim vale pelo princípio), nunca façam nada cujas consequências não estejam dispostas ou preparadas para enfrentar.

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